Italiana de Florença, a arquiteta Maria Pace Chiavari elegeu o Rio de Janeiro o centro de seus estudos. Já tendo lançado livros como “Rio – Preservação e modernidade” (1998), ela concluiu seu doutorado em urbanismo pelo Prourb/UFRJ com a tese “O plano visual de uma capital em transformação – O retrato do Rio de Janeiro nos álbuns fotográficos governamentais (1906-1922)”.
Maria Pace analisa o papel da fotografia nas mudanças ocorridas no Rio do início do século XX. Três álbuns são a matéria-prima, sendo um deles o “Avenida Central 8 de Março de 1903 – 15 de Novembro de 1906”, de Marc Ferrez, presente na exposição “Rio: Primeiras poses”. Nesta entrevista por e-mail, a arquiteta comenta aspectos do trabalho de Ferrez e a importância permanente do álbum, que nos ajuda a pensar no que se transformou a cidade um século depois.
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Marc Ferrez/Álbum Avenida Central/Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles
Capa do álbum. c. 1906
1 – Que papel a fotografia cumpriu nos planos oficiais de modernização do Rio de Janeiro, no início do século XX?
Para realizar o ambicioso plano de modernização da capital federal, o presidente Rodrigues Alves (1902-1906) organiza o novo governo de forma a dividir as diferentes funções: sanitárias, portuárias, municipais e grandes obras urbanas. Nesse contexto, a fotografia pública se torna o instrumento construtor da imagem urbana, capaz de unificar os diversos projetos, fazendo com que os paradigmas de modernidade e progresso, símbolos do novo regime republicano, assumam destaque e visibilidade.
Em relação à fase de urbanismo que se inicia, no Brasil, a partir do início do século XX, o uso pelo próprio governo da fotografia, na qualidade de imagem oficial, faz com que as modernas obras de engenharia e suas conexões com o tecido preexistente sejam valorizadas e, dessa forma, reflitam a atuação do novo regime republicano, legitimando seu poder. Ao retratar a renovação do porto e as avenidas recém-abertas, principais fatores de transformação da estrutura da cidade, as imagens fotográficas permitem relacionar a moderna rede de circulação urbana com as diretrizes de expansão que ela determina.
Marc Ferrez/Álbum Avenida Central/Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles
Lado do Oeste entre rua São José e rua 7 de setembro. c. 1903
Entre as funções atribuídas à fotografia, está a de agregar valor ao produto, no sentido de valorizar e divulgar as novas áreas de “solo urbano produzido”. Define-se assim o solo objeto de importantes investimentos da parte do governo e da iniciativa privada em infraestruturas e transportes. É o caso da Avenida Central ou de áreas de nova urbanização, como os bairros de expansão na direção sul. Dentro da mesma lógica, encontram-se as numerosas fotos de paisagem, nas quais os monumentos da natureza, uma vez integrados ao tecido urbano, tornam-se um ulterior fator de valorização para as áreas próximas.
Dessa forma, registros e álbuns fotográficos institucionais produzidos ao longo das primeiras duas décadas do século XX permitem visualizar o projeto urbano anunciado por Rodrigues Alves no seu discurso de posse, em 1902, e formalizado por Pereira Passos. Em “Avenida Central 8 de Março de 1903 – 15 de Novembro de 1906”, de Marc Ferrez, encontra-se a biografia da Avenida Central. A obra, realizada sob a direta gestão do governo federal, assume a função de divulgar o marco que, segundo Paulo Santos, abre “uma nova fase na história da cidade”, tornando-se o paradigma da gestão do período, denominado de Primeira República.
O plano de Pereira Passos (1902-1904), pelo fato de não ter sido concluído durante sua gestão como prefeito, serve como fio condutor para os projetos urbanos dos sucessivos governos. Da mesma forma, o projeto de renovação do porto, anunciado por Rodrigues Alves, realiza-se em diferentes fases. O álbum “Vues de Rio de Janeiro – Brésil”, de Musso & Cia (1910), é uma demonstração disso, como também o “Álbum do Porto” (1913-1923), que retrata as várias fases de sua execução.
O “Álbum da Cidade do Rio de Janeiro em comemoração do 1º Centenário da Independência do Brasil 1822-1922”, realizado no governo de Epitácio Pessoa (1919-1922) pela municipalidade do Distrito Federal, sendo prefeito Carlos Sampaio, apresenta-se como o fechamento do amplo projeto urbano. O plano visual construído pela fotografia, com frequente recurso às vistas panorâmicas, chegando até os limites do Distrito Federal, coloca em destaque o percurso e a conclusão dessa fase de urbanização, fruto da gestão do governo da Primeira República, que foi capaz de transformar e modernizar a capital federal.
2 – Marc Ferrez tinha liberdade para escolher seus enquadramentos ou foi pautado para registrar as fachadas da forma que fez e realizar algumas vistas gerais?
Na documentação presente no Arquivo Nacional relativa à atuação da “Commissão Construtora da Avenida Central” e em sua correspondência com Ferrez, não se encontram documentos que tratem sobre modalidades ou qualquer obrigação imposta em relação ao registro fotográfico da Avenida ou de suas fachadas. Embora a documentação da fase de construção da Avenida Central tenha sido realizada pelo fotógrafo J. Torres, a contratação de Marc Ferrez como responsável pela parte fotográfica da publicação “Avenida Central 8 de Março de 1903 – 15 de Novembro de 1906”, motiva-se, além de sua capacidade artístico-fotográfica, pelos conhecimentos técnicos do fotógrafo. A estrutura da publicação parece ser formulada no âmbito da mesma Comissão, conforme as diretrizes do próprio governo. No epistolário é evidente tal postura no que se refere aos elementos a ser fotografados e às legendas e técnicas de impressão a ser utilizadas.
Nas vistas gerais, a imagem paradigmática “Avenida Central. Vista em direção Sul” é tomada do mesmo ponto de vista da análoga de Torres, “Avenida em direção ao Castelo” (1905-1906), que pertence à coleção A. Werneck. É provável que essa última tenha servido a Ferrez, de acordo com a Comissão Construtora, para determinar o ponto de vista. Na comparação é possível observar a abertura mais ampla utilizada por Ferrez em relação a Torres. A tarefa para a qual Ferrez tinha sido contratado, segundo Gilberto Ferrez, era, além de reproduzir as vistas do amplo traçado, visualizar e documentar os novos prédios e suas fachadas.
Marc Ferrez/Álbum Avenida Central/Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles
Avenida Central, vista para o sul. c. 1903
A escolha da Comissão Construtora da Avenida Central de identificar a arquitetura do prédio apenas pela imagem de sua fachada, além do interesse formal, decorativo e didático, representa o meio “engenheirístico” para controlar a execução da obra realizada. Tal atitude reforça a ligação entre a fotografia e a engenharia, com a primeira dando valor à segunda. A possibilidade de comparação entre projeto e fotografia é uma razão para contrapor as construções da Avenida Central, obras de engenheiros e arquitetos, com a mediocridade das construções corriqueiras, realizadas então pelos mestres de obra.
Cabe à fotografia de Ferrez tornar possível tal operação. De fato, a redução da fotografia da fachada, ilhada do resto por cortes nas laterais operados nos negativos, parece fazer parte de uma tendência em uso na época. A fachada principal constituía o elemento que divulgava a própria construção e seu autor. Tal método foi também utilizado pelo ateliê Musso, retratando as construções realizadas por Antonio Jannuzzi, em fotos que faziam parte de catálogos que serviam para divulgar as edificações realizadas pela construtora nas exposições.
3 – Em sua tese, você ressalta, sobre os três álbuns analisados, que: “Nas fotografias dos prédios da Avenida Central as fachadas perdem a relação entre si e com o próprio prédio. Como cartazes, assumem a função de comunicação junto à rua”. Isso prejudica uma compreensão geral do que era a avenida?
Hoje seria possível recorrer a recursos digitais para fazer a reconstrução da Avenida Central a partir da sequência das fachadas, uma vez reposicionadas no seu lugar, como foi feito alguns anos atrás numa exposição no MAR (Museu de Arte do Rio). Em pequena escala, eu mesma experimentei esse processo na tese para avaliar as proporções entre as edificações e a escala do amplo traçado da Avenida. Todavia, tal operação não está prevista na forma como os documentos são apresentados no álbum original. A maneira de obter uma visão do conjunto, mesmo parcial, mas que permita sua compreensão é possível fazendo recurso às Vistas Gerais, série de quatro fotos presentes no mesmo documento original.
As imagens soltas das fachadas da Avenida Central, embora não deixem reconstruir visualmente o conjunto arquitetônico recém-construído, constituem hoje lembranças da arquitetura daquela época, de matriz eclética. A então decisão da Comissão Construtora de reproduzir as fachadas dos prédios construídos isoladamente, sem ligações entre si, aproximando as imagens fotográficas de seus respectivos projetos de modo a facilitar a comparação, assume, no contexto daquele momento, um sentido quase didático. Tal forma de apresentação parece favorecer a leitura dos códigos sobre a moderna maneira de fazer arquitetura. O interesse em priorizar a fachada acima de todos os outros elementos construtivos estava presente desde a organização do Concurso das fachadas, forma escolhida para selecionar os prédios que deviam compor o novo cenário urbano.
Sede do jornal O Paiz, na avenida Central, em três momentos: projeto, foto original e foto publicada no álbum
Todavia, o corte operado na reprodução fotográfica das fachadas pode ser visto, no âmbito da história da arquitetura, como parte de um processo de transição em direção à modernidade, onde a própria estrutura do edifício é colocada em questão. É possível verificar isso ao comparar as fotos públicas presentes no documento institucional com as imagens comerciais que se referem aos mesmos prédios da Avenida Central. Enquanto nas primeiras, que retratam as fachadas, assumem destaque cornijas, estuques e materiais tradicionais, nas segundas, que mostram seus interiores, são visíveis modernas estruturas de ferro com colunas e elevadores.
Como conclusão para responder à pergunta, diria que de fato o tratamento sofrido pelas fotos não prejudica sua leitura, considerando que, na cultura visual, a leitura das imagens não é mais direta no sentido de não se ater apenas ao que elas mostram. É preciso eleger o olhar como objeto de investigação e fazer da visão uma prática construtiva, capaz de produzir significado.
Marc Ferrez/Álbum Avenida Central/Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles
Palácio Monroe na avenida Central, atual avenida Rio Branco. c. 1903
4 – Como olhar hoje o álbum “Avenida Central” nos ajuda a entender as transformações por que o Rio passou nos últimos cem anos?
Entre os meios de comunicação da época, o álbum “Avenida Central” parece ter conseguido melhor satisfazer a grande expectativa em torno do imperativo “regeneração”, denominação utilizada pela imprensa ao se referir ao processo de modernização da capital federal.
Frente aos numerosos projetos dos quais é permanentemente objeto a Avenida, hoje Rio Branco, é possível observar que o paradigma de modernidade que caracterizou sua abertura se confirma, se renova e se fortalece após cem anos, a ponto de estimular sempre diferentes formas para seu uso sobre o mesmo, uma vez tão amplo, traçado .
Para o debate contemporâneo, o álbum “Avenida Central” parece trazer sempre novos elementos enriquecedores. A atualidade do seu conteúdo encontra-se na função por ele exercida de predispor as imagens e os instrumentos a uma nova forma urbana. Embora das arquiteturas originais fiquem poucos exemplos, alguns mais simples, outros monumentais, o resultado significativo dessa operação foi valorizar a concepção moderna do espaço. Ao olhar hoje o álbum, é possível entender a sua produção como a forma escolhida para persuadir o leitor do conceito material, simbólico e visível de nova centralidade introduzida na antiga estrutura urbana, que desde então começa a se transformar num elemento de comunicação.